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4 de junho de 2024
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A INFINITA JORNADA DO TREM DO ENTORNO DO DF*

Há alguns anos convivemos aqui em nosso território com a defesa sempre recorrente daproposta de retomada da operação do transporte…

Há alguns anos convivemos aqui em nosso território com a defesa sempre recorrente da
proposta de retomada da operação do transporte de passageiros, ao longo dos trilhos que faz a
ligação entre as cidades de Luziânia/GO e Brasília/DF, hoje sob a concessão de uma empresa
privada e utilizada somente para a circulação de carga. Essas proposições, que já contaram com
o apoio de chefes do executivo, de setores da academia e outros, são apresentadas como a
solução de mobilidade para os habitantes do Entorno do DF, e quase sempre são muito mais
incisivas em segmentos que estão fora dos municípios goianos, visto que, como morador da
região, não percebo uma mobilização das comunidades do Eixo Sul e nem mesmo grandes
expectativas de que, com os trilhos, as coisas serão diferentes.

Se, na maior parte desses anos, a defesa se concentrou na apresentação de uma solução
baseada em trens, com maior capacidade para atendimento da demanda, agora vejo a iniciativa
conduzida por um Senador, no âmbito da Comissão de Infraestrutura daquela casa, para a
discussão do projeto de um Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), que faria a ligação entre as duas
cidades, e com possibilidade de inserção no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
Segundo informações disponibilizadas pela Agência Senado, o projeto envolveria um
investimento total de R$ 80 milhões, com a contribuição do Fundo de Desenvolvimento do
Centro-Oeste (FCO), e que, inclusive, já teria sido publicado um edital para a contratação de
uma empresa de consultoria que ficaria encarregada da produção do Estudo de Viabilidade
Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA), que seria uma das primeiras etapas desse processo.

A primeira preocupação em relação a essa proposta do VLT é o fato de que ela está em
sobreposição a outro projeto de mobilidade para a mesma região – o do BRT, incluso no PAC,
que também se propõe a estabelecer uma conexão entre Luziânia e o DF, com integração no
Terminal de Santa Maria/DF, onde os passageiros do Entorno poderiam entrar no Sistema de
Transporte Público Coletivo do Distrito Federal (STPC/DF). Este projeto do BRT, com extensão
de 28 km e proposta de implantação de 4 terminais de integração ao longo do Eixo Sul da BR
040, tem custo estimado em R$ 1 bilhão. O projeto do VLT também estaria sobreposto em
trechos do BRT e de outras linhas do STPC/DF, onde os contratos tiveram a vigência
recentemente prorrogada por mais 10 anos.

A princípio, quando comparados apenas os valores divulgados para implantação dos dois
modais, não haveria dúvida de que o VLT seria a alternativa mais adequada e, por isso, o
projeto mereceria ser priorizado, e não o do BRT. Entretanto, tenho a desconfiança de que os
valores estimados para a viabilização desse projeto do VLT estariam subdimensionados, em que
pese a difusão da ideia de que os trilhos já existem e que bastaria um processo de readequação
para o uso deste modal, visando ao transporte de passageiros.

Por exemplo, se levarmos em consideração as informações técnicas que foram divulgadas, à
época, relacionadas à proposta de implantação de um projeto de VLT em Brasília, com ligação
entre o Aeroporto e o futuro Terminal Asa Norte, com extensão total de 22,3 km, 24 estações e
previsão da operação de 39 trens com sistema de alimentação por catenária, o custo total foi
estimado em R$ 2,1 bilhões, envolvendo também obras civis. Para se ter uma ideia, somente a
composição que foi prevista para este projeto do DF, integrada por 7 vagões e capacidade para
o transporte de até 400 passageiros, teria um custo unitário de R$ 22 milhões, em valores do
ano de 2020. Projetou-se um custo adicional de 20%, caso a composição tivesse o seu sistema
de alimentação modificado para bateria.

O projeto do VLT de Brasília tem a previsão do atendimento de uma demanda muito maior à
comparada para o modal do Entorno, com intervalo de 4 minutos entre os trens nos horários de
picos. Por isso, a projeção da operação com 39 composições no DF. No entanto, mesmo
considerando que a demanda potencial a ser atendida pelo VLT do Entorno ainda será objeto de
estudo técnico, a compra de apenas 4 composições já extrapolaria o valor inicialmente
divulgado como o montante necessário para a implantação do projeto. Mesmo sem dados
técnicos para subsidiar a análise, sabe-se que seriam necessários muito mais do que 4 trens
para atender os possíveis usuários do sistema, caracterizado por forte compressão nos horários
de picos e uma certa ociosidade nos demais períodos do dia.

Outro aspecto importante para análise se refere à natureza específica de uso e de implantação
dos projetos de VLT. Documento produzido em conjunto pela Associação Nacional dos
Transportadores de Passageiros sobre Trilhos (ANPTrilhos) e pela Associação Brasileira da
Indústria Ferroviária (Abifer), denominado VLT Mobilidade Sustentável
(https://anptrilhos.org.br/wp-content/uploads/2017/05/VLT-Mobilidade-Sustentavel-2017.pdf),
descreve que “…os projetos de VLT são oportunidades para renovação e reordenação das
cidades, pois permitem repensar a mobilidade nas áreas urbanas e centros históricos, trazendo
impactos positivos ao local”.

Pesquisando os sistemas de VLT implantados em diversas cidades ao redor do mundo, incluindo
os projetos locais do Rio de Janeiro/RJ e o de Santos-São Vicente/SP, verifica-se que todos têm
perfil urbano, onde contribuem para a requalificação de áreas centrais e ajudam na valorização
imobiliária, compartilhando o espaço viário em harmonia com pedestres e ciclistas, sem a
existência de barreiras físicas que impedem o direito de acesso à cidade e com baixo nível de
emissão de materiais poluentes. O VLT é um modal indicado tecnicamente para a operação em
trechos urbanos não muito extensos, onde circula com velocidade média de 25 km/h, nunca
para a circulação por longas distâncias como a prevista entre Luziânia e Brasília, acima de 60
km. No sistema de trilhos, isso é muito mais apropriado para o modal trem metropolitano.

Nesse sentido, como imaginar a implantação de um projeto de VLT onde, mesmo com a
previsão de circulação pelas áreas de três municípios goianos em que se nota o aumento da
densidade populacional (Cidade Ocidental, Luziânia e Valparaíso de Goiás), também se registra
a existência de longos trechos do atual sistema de trilhos representados por vazios urbanos,
como as extensas áreas de propriedade da Marinha e as de proteção ambiental, além da Região
Administrativa do Park Way, caracterizada por residências unifamiliares em terrenos
individualizados acima de 2 mil m2?

A premissa básica para a implantação de projetos de trilhos, dentro da perspectiva da
mobilidade urbana, é a existência de uma demanda de passageiros que seja compatível com o
potencial de atendimento de trens, metrôs, VLTs e monotrilhos, que são modais voltados para
média e alta capacidade. Como imaginar a adequação de um projeto de trilhos em território
caracterizado por viagens pendulares, sem renovação de passageiros, com alta ociosidade de
frota nos entrepicos e que também circulará por áreas com baixa densidade demográfica? O
projeto do VLT seria antecedido por iniciativas no campo das políticas de uso e ocupação do
solo? O custo-benefício deste projeto será dimensionado e considerado antes de qualquer
encaminhamento?

Também preocupa a insistente relativização de que os trilhos já existem e bastariam apenas
pequenos ajustes para a viabilização dos projetos para o transporte de passageiros ao longo do
sistema. Além das questões técnicas associadas à própria adequação de bitolas e dormentes
existentes atualmente e da necessidade da construção de estações e outras infraestruturas,
também deve ser objeto de atenção o fato de que uma significativa extensão dos trilhos está
localizada em áreas completamente isoladas. Como seria viabilizado, por exemplo, um plano de
contingência para o resgate dos passageiros de uma composição, em área deserta, no caso de
qualquer ocorrência durante a operação? Essas questões também devem merecer avaliação.
Por fim, sabe-se que as viagens originadas no Eixo Sul do Entorno do DF têm como interesse e
destino principal a área central de Brasília. Com o VLT e a proposta de utilização da antiga
Rodoferroviária como parada final, em local não tão próximo à Rodoviária do Plano Piloto, a
criação de uma integração compulsória no final da viagem e a introdução de um trecho negativo
seriam elementos de atração de usuários para o modal?

O trem entre Luziânia e Brasília, e agora a proposição da ligação do trecho através de um VLT,
insistem na apresentação dos trilhos como sendo a parte da solução para os problemas de
mobilidade da região do Entorno do DF. A população dos três municípios goianos localizados no
Eixo Sul não mais se anima com projetos recorrentes que não se concretizam e que não
colaboram para efetivamente interromper a jornada desgastante de quem precisa se deslocar
todos os dias no transporte público em direção ao DF, se submetendo a viagens de longa
extensão e duração, em frotas velhas e com tarifas que comprometem o orçamento familiar.
Considerando que já foi criada oficialmente a Região Metropolitana do Entorno do DF, a
instituição do Consórcio Interfederativo reunindo 4 entes (União, Governo do DF, Governo de
Goiás e Municípios) é a etapa que agora precisa ser acelerada para que as mudanças possam
ser de fato implementadas em toda a área. Essa formalização vai criar as condições objetivas
para a qualificação do sistema de transporte público coletivo que opera no Entorno, uma vez
que o aporte de recursos pelos entes federados vai possibilitar o custeio e a realização de
investimentos no Serviço Interestadual Semiurbano e, mais adiante, pode ser o processo
embrionário para a construção de uma rede metropolitana dentro do território.

Além de promover o debate acerca do projeto do VLT para o Entorno, dentro do PAC, avalia-se
que o Senado também poderia empreender esforços, principalmente junto à União, para
viabilizar a constituição do Consórcio Interfederativo e, com isso, apontar para o início de um
potencial processo de transformação da região, garantindo o fortalecimento e a reestruturação
do sistema de transporte público e a melhoria da qualidade de vida da sua população.

Wesley Ferro Nogueira é economista, atualmente é Secretário Executivo do Instituto
MDT, colabora no Projeto “Pensar o transporte público na cidade planejada para o
automóvel” e é membro titular do Conselho de Transporte Público Coletivo do DF e do
Conselho de Trânsito do Distrito Federal.



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